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Autor:Teresa Perdigão

Uma instituição com 150 anos de actividade ininterrupta, como é a Sociedade Musical Euterpe de Portalegre, tem na sua história de vida, factos relevantes que têm sido assinalados ano após ano, na data da sua fundação, e estórias que permanecerão na memória de quem tem contribuído para o seu sucesso e longevidade.

Em 2010, a exposição “Euterpe e Portalegre, 150 anos de História”, inaugurada no dia da cidade, na Galeria de S. Sebastião, nos Paços do Concelho, deu a ver documentos escritos, fotos, estandartes, fardas e instrumentos que consubstanciam uma parte do rico acervo da Sociedade.

Neste memorial e em qualquer mostra, permanecerá quase invisível o seu quotidiano – o burburinho e a azáfama diários de jovens que gerem os tempos livres de forma a ocupá-los com as aulas de música, tornadas possíveis graças à dedicação dos professores que coordenam uma escola de prestígio de onde têm saído músicos para os conservatórios, alguns deles já profissionais; a ginástica financeira dos directores para suportar as despesas; a permanente inquietação dos responsáveis pela falta de espaço e de condições para assegurar o bom estado do acervo patrimonial,ou a acção voluntariosa dos monitores que contribuem para prestigiar a escola de música. E ainda, os ensaios e os desfiles em festas e romarias ou os concertos, tudo isto mantido ao longo dos anos, devido ao amor à música e ao perfil de muitos músicos que aprenderam o valor do que paulatinamente vai construindo as suas personalidades, fazendo-os mais felizes.

Ficará invisível o esforço dos directores que, na opinião do ex-director João Cabecinha, contribuíram incansavelmente e acima de tudo, para fazer reinar a harmonia entre os músicos, o que se reflecte hoje na forma como os antigos falam comovida e saudosamente desse tempo, referindo-se-lhe como o melhor das suas vidas. Ou no entusiasmo que os mais jovens põem na aprendizagem do instrumento, contribuindo para fazer da banda “a família da música”, como afirma Renato Bento, de 15 anos, ou para “contribuir para a cultura da cidade”, como afirma Daniel Santos, de 12.


 

Todos são unânimes em reforçar que o espírito que tem mantido viva a Filarmónica é o amor pela música, por actuar e por receber o carinho de quem ouve. Os exemplos de músicos dedicados e assíduos são frequentes. Lembremos o de João Mouzinho que diz convicto e comovido: “eu fazia da música a minha vida!” e acrescenta: “Eu era mil por cento agarrado à banda. Eu não podia ter a mais pequenina falha. Tanto fazia estar a chover, como estar frio como estar a nevar, como estar calor ou a temperatura que estivesse, eu era assíduo”. João Mouzinho orgulha-se de ter permanecido na banda 35 anos sem nunca ter dado uma única falta nem a um serviço nem a um ensaio. E residia em Alegrete, a 15 quilómetros de Portalegre.

O que influencia subtil, mas determinantemente a banda, são os jovens que hoje constituem a maioria dos músicos, com uma idade média de 24 anos, num total de 47 elementos. “A banda determinou a vida do meu filho”, diz o pai de um dos músicos profissionais. O mesmo se pode ouvir da boca do actual Director, Miguel Monteiro, que se iniciou aos 8 anos, juntamente com o seu irmão, hoje ambos totalmente dedicados ao desempenho e ao ensino da música. E, quando questionado sobre a razão de tanta dedicação, Miguel responde, sem hesitação, que aceitou ser Director porque estava na hora de retribuir tudo o que a Sociedade lhe havia dado. Procurando que muitos sigam o seu exemplo, não cessa de cativar jovens, junto das escolas, para as aulas que ali se fazem gratuitamente, de formação musical, de metais, de palhetas, de percussão, de trompa e de trombone.


 

Chegar aos 150 anos, sem interrupção, não significa fazer um caminho sem dificuldades. Os testemunhos são bem claros desse árduo percurso. A banda chegou a sair com 17 elementos, o que até pode ser considerado caricato, diz um dos antigos directores, “mas andou sempre para a frente”. Quando havia falta de tocadores ia-se à procura de bons executantes e acenava-se-lhes com o brio e a honra que era pertencer à Euterpe de Portalegre. Quando havia mais necessidade de dinheiro para arranjo dos instrumentos ia-se a todas as festas e romarias da região. Só assim foi possível persistir e resistir.

Falar da vida de uma Sociedade tão longa é falar dos que têm contribuído para a sua permanência e sustentação, muitos deles já homenageados publicamente e tantos outros representados em notícias e fotos que constituem o valioso acervo desta instituição.

Se, por um lado, o êxito e a competência musical da banda dependem da maestria dos músicos, não é de menor relevo, a formação do mestre, associada à persistência, à dedicação e à relação com os seus instruendos. Desde 1860, que os fundadores, encabeçados por Francisco José Perdigão (1840-1909), de apenas 20 anos, tiveram consciência da importância destes alicerces e os reforçaram de tal maneira que as gerações seguintes os receberam e transmitem. Este entusiasta e impulsionador era ele próprio compositor e deixou obras da sua autoria que demonstram bem desta preocupação, das quais se destacam os hinos da própria Sociedade Euterpe e dos Bombeiros Voluntários de Portalegre e ainda os da Senhora da Penha, da Fábrica Robinson, dos estudantes de Portalegre e do Grémio. Note-se que foi também ele o compositor da partitura intitulada “Salvé Cruz”, dedicada, em 1900, ao monumento Fim do Século erigido na Penha e de um original dedicado ao Papa Leão XIII (composto em 1892). Foi ele o primeiro maestro da então Sociedade Filarmónica Euterpe e um dos mentores da Associação de Socorros Mútuos Montepio Euterpe Portalegrense, fundada em 1866, cujos objectivos eram “melhorar a sorte dos associados e contribuir para a sua moralização”. Tinha por finalidade auxiliar os sócios doentes e temporariamente impossibilitados de trabalhar e as famílias dos que estivessem na condição de presidiários, bem como nas despesas de funeral dos que necessitassem.

Desaparecida em 1945, esta mutual, reflexo das preocupações sociais e cívicas da altura, desempenhou um papel preponderante na sociedade de então, tendo como sócios não só as elites locais que eram os sócios protectores ou honorários, como grande número de trabalhadores portalegrenses. Francisco José Perdigão surge como sócio ordinário e com a profissão de organista.


 

António José Carrapiço foi músico na Banda Euterpe, desde 1933 até 2005; dos 10 aos 82 anos, sem qualquer período de interrupção, acrescido pelo facto de ter dedicado 12 desses anos à Direcção. Ele é, pois, a memória mais antiga da banda, um guardador de saberes e experiências que, naturalmente, fazem a história da instituição, à qual ele chama “a nossa velhinha”, para a qual viveu e à qual atribuiu o epíteto da “mais importante relíquia de Portalegre”(1). Conviveu com todos os maestros, desde Manuel Garção até ao actual e foi discípulo de todos eles. Participou em centenas de procissões das festas locais e da grande festa de Nossa Senhora dos Remédios, em Valência de Alcântara. Animou as ruas da cidade e esteve presente nas visitas de chefes do Estado e na chegada dos bispos(2) a Portalegre, acontecimentos onde nunca faltava a “velhinha”.

Foi o mestre Manuel Garção que o iniciou no solfejo e lhe entregou o primeiro flautim, logo a seguir substituído pelo clarinete que tocou até Outubro de 2005, momento em que, comovido, entregou a carta de despedida.

Como decano desta instituição, coube-lhe durante anos seguidos pronunciar o discurso de aniversário da mesma, onde, para além de homenagear a sua “velhinha”, fazia sistematicamente o elogio dos músicos, não se eximindo de os nomear e apontar as suas qualidades. Estes discursos são um justo contributo para a preservação da memória dos que deram vida à banda. E, embora possam pecar por omissão, é com satisfação que nomeamos os que, em situações quase extremas, lhe deram parte da sua vida. Lembremos, os que, depois de um dia a actuar com o Conjunto Musical, iam logo a seguir integrar a banda para prestar os serviços necessários; os que deixavam os seus trabalhos para responder à chamada; os que fechavam as portas da oficina para darem prioridade à banda, com prejuízo para as suas profissões; os que faziam caminhadas de quilómetros, para participarem nos ensaios. António Marques Rolo, por exemplo, tocou 58 anos e não há memória de qualquer ausência sua, tanto em ensaios como em serviços, apesar de ter de andar 14 quilómetros a pé.

António Carrapiço também não se eximia a exaltar a acção dos Directores com quem colaborava, nomeadamente José Luís Dias, João Cabecinha e António Portilheiro de quem usurpou a tão repetida frase «A Euterpe é a voz de Portalegre».

(1) Cf. Carta endereçada à Banda e intitulada “A minha despedida da Banda Euterpe”.

(2) Por exemplo, a chegada do Bispo Agostinho Moura a Portalegre, em 1953.

 


 

Servem estes exemplos para reforçar a importância de homens que, de forma voluntariosa, dedicaram as suas vidas ao bem comum, à cultura e à cidade de Portalegre, consumando os grandes objectivos desta Sociedade, aqui transcritos do Plano de Actividades de 2009: “A Banda Filarmónica e Escola de Música não proporcionam apenas a aprendizagem musical. Ambas estão vocacionadas, não só para desenvolver a cultura, mas também para serem uma escola para a vida, em todos os seus aspectos. Num mundo onde o individualismo quer reinar, a superioridade quer vencer, as relações humanas estão em crise e a vida familiar conturbada, esta colectividade assume-se como um meio vital para a modelação de personalidades – como um modo positivo de encarar a vida”.

Foi em 2003 que os directores e alguns sócios se começaram a aperceber que a renovação dos elementos da banda não estava a acontecer, o que fazia com que a média de idades fosse muito alta. Por outro lado, consideravam que era necessário actualizar o reportório e dar-lhe mais qualidade, procurando acompanhar as novas tarefas para as quais as bandas já estavam a ser solicitadas, como seja, o trabalho em palco. Reflectindo sobre estes assuntos, decidiram-se pela mudança. Mudou a Direcção. Mudou o maestro. Adquiriram-se instrumentos sem os quais não seria possível alterar o reportório e todos os elementos da banda passaram a saber ler música. Por conseguinte, foi dado papel de relevo à formação musical e à actualização dos conhecimentos dos músicos de forma, como diz o maestro, a que estes tanto possam tocar numa procissão, numa festa ou numa tourada, como em cima de um palco. A tendência é que, paralelamente ao desfile de rua, a banda seja uma instituição de entretenimento, ao serviço da população da cidade, repetindo experiências como as teve com o maestro António Vitorino de Almeida, com os cantores de ópera do Teatro S.Carlos ou com o Orfeão de Portalegre. Portanto, todo o seu esforço tem sido, em consonância com a Direcção, prosseguir o caminho da renovação e da actualização.


 

Nesta senda tem havido a preocupação de incorporar elementos jovens, contrariando, com êxito, o envelhecimento e a estagnação da banda. Neste momento, a escola tem cerca de 30 alunos de idades compreendidas entre os 7 e os 35 anos e o elemento mais antigo da banda é António Fandango, com 60 anos, que também já foi regente. «É claro que houve pessoas que se afastaram. Foi preciso arranjar estratégias para a banda continuar e para se renovar. A Direcção teve muita coragem para renovar a sua imagem. Foi com eles que começámos a fazer concertos porque a banda não fazia concertos», afirma Henrique Ruivo e continua: «Começámos a mostrar ao povo de Portalegre que tem uma banda diferente, uma banda com quase 50 miúdos que conquistaram Portalegre». Mas a este sucesso não é alheia a importância da escola. «Não há projecto nenhum que se desenvolva sem formação. Se não houver formação ficamos estagnados no tempo».

Miguel Monteiro, Presidente da Direcção, acrescenta em uníssono: «As bandas filarmónicas têm uma realidade muito própria … não podemos romper com o passado mas temos de tornar a banda algo de aliciante para as pessoas. Isto tem de ser um desafio. Quando cheguei à direcção fizemos uma remodelação a nível do instrumental, por isso, agora estamos muito bem munidos de instrumentos».

A Sociedade Musical Euterpe, agora renovada, realizará concertos e os festivais de bandas. Continuará a comemorar anualmente o seu aniversário, participará nos concertos de Natal e abrilhantará a cidade sempre que para tal é solicitada.