As línguas do Teatro Popular Mirandês (referimo-nos exclusivamente aos textos recolhidos por António Maria Mourinho, aqui editados) são o português, o castelhano e o mirandês. A língua predominante é o português. O castelhano aparece-nos, na boca de pastores, quer em textos oriundos de autores da chamada escola de Gil Vicente, como Afonso Álvares, lembrando as églogas salmantinas, quer em textos de autores locais, como Basílio Rodrigues, memória eventual dos castelhanos e galegos que rumaram à Terra de Miranda. O mirandês está reservado quase exclusivamente para o Tonto ou Gracioso, cumprindo assim, quase unicamente também, um objectivo cómico1. Atente-se nestas palavras da Imperatriz Porcina, nas quais ressaltam algumas palavras ou expressões – pilha gatos, cocharão, perro fedorento, carranchim, boubelo, … – típicas e castiças que perseguem justamente o objectivo da comicidade. Mas o Tonto acaba também por encarnar uma espécie de alter-ego colectivo, criticado, ajuizando, fazendo justiça, dando voz ao povo anónimo que assim se pode vingar, ainda que simbolicamente, mas de forma
recompensadora, de quem o oprime, o avilta e o injustiça.
GRACIOSO
Que dizes meu pilha gatos Refalssísimo intrujão
Não foste tu que as comeste Com esse grande cocharão. […]
Seu perro fedorento
Ainda fedia mais que um boubelo Inchava a todos
Quantos iam a vê-lo.
(Imperatriz Porcina)
A questão das línguas está também intimamente ligada com o grau da instrução dos "regradores" que, para além de dirigirem as representações, eram, em muitos casos, os "autores" ou, pelo menos, os detentores dos textos que eles próprios copiavam, acrescentando ou suprimindo palavras, versos ou personagens. Ora os "regradores", possuindo, quase sempre, um grau de instrução bastante rudimentar, esforçavam-se por falar e escrever "bem" em português, relegando a língua mirandesa para o domínio humorístico que é conseguido, como vimos, pela utilização de palavras ou expressões julgadas diferentes ou mais "afastadas" do português.
Na Pintura de S. Brás, Fala Só, o Tonto, usa também os topónimos como marcas de uma linguagem quase esotérica uma vez que só é totalmente compreensível pelo público local:
São Brás e mais o pintor
São amantes da maroteira
Lá foram dar um passeio
À volta da Peinha Mingueira
Passaram pela Formiga
Pela Quinta de Cordeiro
E pelo caminho inteiro
Nunca lhe doeu a barriga.
Isto é que é uma cantiga
São Brás como um anjo do céu
Lida-se bem com o pintor
Também assim faria eu
Tirou-lhe de madeira quatro arrobas
Da cara, da mitra e da testa
E vestiu-lhe roupa nova
Que pimpão para o dia de festa.
Naturalmente que este uso diferenciado das línguas, caracterizado por uma hierarquia muito clara entre o português (língua de prestígio), o mirandês e castelhano (línguas desprestigiadas, sobretudo o mirandês), está igualmente ligado com a situação sociolinguística do mirandês e toda a história de abandono do mundo rural que acompanhou esta língua durante muitos séculos. Vejamos agora, de uma forma genérica, as características respeitantes à linguagem, à ortografia e aos fenómenos fonéticos que se podem identificar nestes textos:
a) Formas incorrectamente grafadas mas com uma ortografia espectável em textos de carácter popular: iternamente, abunadas, aculhimento, idulatrada, averá, orrenda, orrendo, orror, xama- lhe, peçobos, ade-o, homecideas …
b) Variação gráfica espelhando mudanças fonéticas/fonológicas antigas: gerarquia, assenar, prossições, …
c) Pronúncia nortenha (e também mirandesa) com troca de [ß] por [v]: beludo, tibera, benera, ataba, beio, …mas também acavemos, acavando, …
d) Alternância im/em: emperador;empostor,infermos;inssopada,…
e) Dissimilação: hipocresia;…
f) Assimilação ou alternância a/e:lember(cf. com [e] por [a] latino, mir. beilar, beiladeira)
g) Formas populares resultantes de mudanças fonéticas e analógicas que acabaram por não ter fortuna na língua: oscultar (auscultar); anestias (amnistias); desvirar-lhe (virar-lhe).
h) Flexões verbais da oralidade popular : acabasteis, deixasteis, despejasteis, deiam, …
i) Troca de prefixo ob por ab: abserva, …
j) Mirandesismos (sobretudo, como já foi referido, nas intervenções do Tonto ou Gracioso): boubelo ('poupa'; mir. boubielha ─ cf. castelhano abubilla); entolhar (< ANTE OCULUM), que alternava com antolhar; manada (mir. 'porção de coisas que se pode levar numa mão); strefugueiro (mir. e port. 'pedra a que se encosta a lenha que arde na lareira'); cocharão (vd. cast., e mir., cuchara); demudado (mir., e port. ant., demudar; cf. port. mudar e mudado); perros (mir.; vd. cast. perros); fertia imperf. do v. mir. fertir, 'fritar, frigir': do part. frito, mir. fertir; cast. fritir/ fretir, cf. lat. frigĕre > port. frigir; cf. port. fritar, do particípio frictu- (fritartambém na Colômbia e em Salamanca) …
Estas e outras particularidades linguísticas conferem ao TPM uma tonalidade muito própria que os individualiza em relação a outras versões dos mesmos textos. E é também no sentido de facilitar a descoberta destas características que apresentamos aqui todo o vocabulário destes textos, ordenado alfabeticamente, assim como uma abordagem estatística preliminar sobre estes mesmos textos.
1 Refira-se que o texto do Gracioso nem sempre aparece escrito. A sua liberdade é tanta que se lhe deixa a possibilidade de criar o seu próprio texto. Como escreve Valdemar Gonçalves "ele tem plena liberdade de movimentos, entra e sai quando quer, diz a suas piadas ou boubadas, faz as sua caretas e dança nos intervalos ao som da música. (...) Normalmente fala de improviso e geralmente em mirandês." Op. cit., pp. 155-156.