Sobre o Corpus - Adivinhário

Fundo Michel Giacometti | Museu da Música Portuguesa

O Museu da Música Portuguesa tem depositado e disponível para consulta uma parte importante do Fundo de Michel Giacometti composto por contos, romances, provérbios, cantigas, orações, anedotas e outros registos de expressões orais, do qual faz parte o conjunto de 233 adivinhas aqui reunidas e analisadas, que designamos como adivinhário.

Recolha das adivinhas

O corpus de adivinhas analisado deriva de recolhas realizadas em 27 concelhos de Portugal Continental, que tiveram por base entrevistas com 57 informantes - 23 do sexo masculino e 34 do sexo feminino, a maioria casados e com idades entre os 45 e os 70 anos. Em algumas localidades, os informantes foram entrevistados em grupos (identificaram-se 5 grupos de 2 pessoas, 2 grupos de 3 pessoas e 1 de 4).

As adivinhas registadas foram recolhidas em 12 distritos diferentes, sendo Braga o distrito mais representado com 29,6% do total do corpus (69 adivinhas, sendo a maioria recolhida no concelho de Cabeceiras de Basto), seguido de Guarda com 17,2% (40 adivinhas, nos concelhos de Pinhel, Almeida e Aguiar da Beira), as restantes foram registadas em Leiria (22), Portalegre (19), Vila Real (15), Setúbal (13), Santarém (19) Beja (11), Lisboa (8), Bragança (6), Viana do Castelo (6) e Castelo Branco (5). Quatro adivinhas não têm a informação sobre o distrito, mas pela identificação do concelho conclui-se que pertencem ao distrito de Santarém.

A maioria destas adivinhas foi recolhida por quinze equipas do Plano "Trabalho e Cultura” entre Julho e Setembro de 1975. Entre as equipas que mais adivinhas registaram destaca-se a equipa “M/E” que, principalmente no distrito de Braga e da Guarda, registou perto do 30% do corpus aqui publicado. Michel Giacometi fez parte de três equipas que não pertenciam ao Plano “Trabalho e Cultura”, tendo sido acompanhado, numa dessas equipas, por José Castela, Vicente Tavares e Elisa Moreira (Dezembro de 1974, em Chancelaria e Torres Novas); noutra por António Pinto e José Soares (Dezembro de 1974, em Ferreira do Zêzere) e numa terceira com Isabelle Cremers e novamente com José Soares (em Julho de 1975, também em Ferreira do Zêzere). No entanto, sob a responsabilidade destas três equipas surgem, apenas, registos de oito adivinhas. Existe ainda o registo de uma outra equipa que trabalhou na recolha das expressões orais, um pouco mais tarde, em 1978, constituída por José Soares, agora acompanhado por Rosário Borges Pereira. Esta equipa foi responsável pela recolha de doze das adivinhas registadas.

 


 

Registo e classificação das adivinhas

O ‘registo’ corresponde, aqui, a um corpus de adivinha recolhido a partir de uma determinada entrevista com um informante ou grupo de informantes, existindo vários registos de adivinhas que contêm corpus iguais ou muito semelhantes, mas que correspondem a diferentes recolhas (informantes, datas e localidades de recolha), o que é revelador da circulação destas expressões orais e das transformações ocorridas nesse processo.

Exemplo:

(i)

Em cima de ti me ponho,

Em cima de ti me tenho,

Muito m’há-de a mim custar

Qu’eu não meto a qu’eu tenho.

R: O pé dentro do sapato.

Recolha: 06-08-1975, Tolosa (Niza, Portalegre). Informante: Maria Esteves/Maria José Esteves/ Brígida Esteves Ribeiro, 82 anos/ 76 anos/…

(ii)

Em cima de ti estou

Em cima de ti me vejo!

Enquanto não o meto todo,

Não apago o meu desejo!

R: O sapato.

Recolha: 09-1975, Germil (Ponte da Barca, Viana do Castelo).

(iii)

Em ti me ponho,

Em ti me maneio.

Morro de pena se num meto o que quero.

R: O sapato.

Recolha: 08-09-1975, Vascoveiro (Pinhel, Guarda).

 

Cada registo corresponde a duas fichas dactilografadas: uma com a transcrição do texto da adivinha, e outra com a caracterização da recolha efetuada através dos seguintes dados: Equipa de recolha; Data; Localidade; Nome do Informante; Idade; Local de Nascimento; Estado Civil; Profissão; Habilitações Literárias; Registo sonoro; e Observações. Existem ainda outras fichas de registo depositadas no Museu da Música Portuguesa, que contêm as informações originalmente manuscritas pelas equipas de campo sobre o conjunto das expressões orais recolhidas em cada entrevista, mas que não foram aqui trabalhadas. De salientar que 51,5% do corpus analisado (120 adivinhas das 233) têm referência a um registo sonoro (cassete), embora não estejam disponíveis no Museu.

Do total das 233 adivinhas do corpus analisado, Michel Giacometti classifica 43,8 % (102) como “ adivinhas simples gerais”; 33,5% (78) como “adivinhas maliciosas”; 10,3% (24) como “adivinhas que envolvem uma explicação e/ou história”; 5,2% (12) como “adivinhas de resposta irónica e/ou sarcástica para o interlocutor”; 4,7% (11) como “adivinhas em trocadilhos”; 2,1% (5) como “adivinhas eruditas” e apenas 0,4% (1) como “adivinha com contas e números”.

As fichas de registo das adivinhas encontram-se agrupadas no Museu da Música Portuguesa de acordo com a categorização acima referida, embora sem informação relativa aos critérios utilizados por Michel Giacometti para essa organização, assim como não existe nenhuma informação classificatória inscrita nas próprias fichas das adivinhas. Existe apenas um documento com a referência à tipologia dos sete grupos mencionados, e as fichas encontram-se agrupadas e envolvidas numa folha de papel com a inscrição de cada uma das categorias a que se referem. Deste modo, não é possível assegurar que os registos (adivinhas) colocados em cada um dos grupos não possam ter sido deslocados de um grupo para o outro durante anteriores manuseamentos.

Podemos dar como exemplo o grupo das ‘adivinhas com contas e números’, em que encontramos apenas um registo, embora constatássemos que existem outros registos cujo corpus se refere igualmente a contas e números, mas localizados noutras categorias.

Exemplo:

“- Nós cá em casa somos dez irmãos,

E cada um de nós tem uma irmã.

Quantos somos?

- Então são vinte.

-Não senhor, somos onze.”

Recolha: 29-08-1975, Abitureiras (Santarém, Santarém). Informante: Guida Luísa Roberto Montês, 55 anos.

Outro exemplo:

“Um tipo estava a medir trigo na êra (dantes debulhava-se na eira o pão para os animais) e tinha uma filha a ajudá-lo.Veio um senhor e perguntou-lhe assim:

Ó menina, sabe ler?

Mestra de quem conta bem?

Faz favor de me dizer:

Um moio de trigo limpo

Quantas meias quartas tem?

 

A rapariga respondeu-lhe assim:

Fala-me em trigo limpo.

Veja, não tem joio.

Quatrocentos e oitenta

Meias quartas tem um moio.

(Um moio é composto por 60 alqueires, 120 meios-alqueires, 240 quartos e 480 meias-quartas – um moio é compostocom 60 alqueires, 10 sacos de 84 litros, 840 litros no total.) Nota: Resta acrescentar que o alqueire tem, naquela região,14 litros. Há, noutras regiões, alqueires de 16, 20, e creio que de 15 litros.”

Recolha: 26-07-1975, Aldeia do Meco (Sesimbra, Setúbal). Informante: Domingos Castelo, 56 anos.

 

Também no caso das ‘adivinhas eruditas’ não é imediato o entendimento sobre a seleção dos registos agrupados na categoria, ou seja, qual a sua relação com o mundo erudito.

Exemplo:

“Que diferença há entre a videira e a pomba?

R: A pomba dá borrachos e a videira borrachões.”

Recolha: 16-07-75,Cortiçada (Aguiar da Beira, Guarda). Informante: António dos Prazeres, 58 anos.

 

Neste sentido, podemos, por um lado, aceitar a probabilidade de terem existido trocas no arquivamento de alguns dos registos, ou podemos admitir, como segunda hipótese, que os critérios com que Michel Giacometti agrupou estas adivinhas tenham justificado a sua classificação nas categorias em que as encontramos, mesmo que essa organização não seja óbvia para a nossa perceção atual. A nossa opção foi sempre a de respeitar o estado (quer nos conteúdos, quer na organização) em que encontrámos este acervo de adivinhas.

 


 

Da análise deste corpus de adivinhas sobressai ainda o volume considerável de ‘adivinhas maliciosas’ (78 adivinhas, 33, 5% do total) o que expressa não só a relevância da dimensão lúdica, jocosa, de entretenimento associada a este jogo, como remete igualmente para a importância dos contextos socioculturais na partilha de códigos comuns entre os interlocutores, que possibilitam a enunciação e o deciframento dos enigmas, através dos seus jogos de ocultação/revelação de sentidos. Como refere Nogueira “Através da adivinha, a dúvida instala-se e as coisas designadas pela linguagem perdem a sua dimensão unívoca em favor da pulverização de sentidos, modificando radicalmente o conhecimento que o sujeito tem do universo” (2004: 337). Assim, a ‘malícia’ pode existir na própria linguagem em que é formulada a adivinha:

“ Qual é coisa, qual é ela? Pão no cu, merda na boca?

R: Pão dentro do forno”

Recolha: 22-08-1975, Abadim (Cabeceiras de Basto, Braga).

Ou pode estar apenas contida em sentidos ocultos, mas partilhados culturalmente, como nos exemplos seguintes:

“- Já lá vens, meu amor,

Quero-te mais qu’ó mê marido,

Queres aqui, ou queres na cama?

- Quero aqui, que daqui até à cama,

Ainda posso perder a gana!

R: O sono.”

Recolha: 20-07-1975, Casegas (Covilhã, Castelo Branco). Informante: Lucinda Geraldes Cipriano, 66 anos.

 

“ Brinco, brinco, brinco,

Quanto mais brinco, brinco,

Mais a barriga me cresce.

R: O fumo.”

Recolha: 21-08-75 Forninhos (Aguiar da Beira, Guarda). Informante: Isabel Vaz, 59 anos.

 


 

O critério de fidelidade aos registos originais e à sua organização aplica-se, de forma mais ampla ao próprio conceito de adivinha que enforma este adivinhário. Se atentarmos à forma e ao conteúdo destas adivinhas, observamos que muitas delas não se inserem nas definições teóricas de Saraiva quando refere que “o nome de adivinha só deve aplicar-se a textos verbais breves que impliquem um jogo de pergunta e de resposta, sendo que esta, clara, está contida naquela de modo cifrado, velado ou inesperado” (1999:435) ou de Nogueira quando afirma que a adivinha “ é um texto verbal curto que apela a uma resposta, contida na pergunta de modo cifrado ou encoberto. A adivinha fornece pois uma definição, insinuante e engenhosa, de algo conhecido, mas dissimulando-o, de forma a não permitir a localização imediata do referente.” (2004:329).

Não assumindo a tarefa de trazer para aqui o “apuramento rigoroso das fronteiras do corpus coberto pela definição de ‘adivinha” reclamado por Nogueira (id.ibidem:328) relativamente a outras compilações de adivinhas portuguesas, optou-se por não efetuar nenhum tipo de seleção, filtragem ou classificação adicional do material encontrado, respeitando a organização e a amplitude do conceito de adivinha existente nestas recolhas coordenadas por Giacometti. Publica-se, assim, neste adivinhário, todos os registos por ele classificados dentro do género. Deste modo, os denominados ‘cúmulos’ (i) ou os ‘contos-adivinha’ (ii) são exemplos da diversidade de registos de adivinhas que podem aqui ser encontrados.

(i)

“Algum de vocês sabe-me dezer qual é o cúmulo dos cúmulos?

R:O cúmulo dos cúmulos é: Até Jesus foi ao Calvário.”

Recolha: 08-1978, Pé de Pedreira/Barreirinhas (Porto de Mós, Leiria). Informante: Martinho Vicente, 61 anos.

(ii)

“Uma sujeita, uma miúda vinha da escola (é quase como uma história mas é moderna) e apareceu-lhe um rapazote emeteu-se com a miúda e disse-lhe para ela, assim: ó menina: você tem que me explicar ou responder a esta perguntaque lhe vou fazer. E se a menina não me explicar, eu vou, e você vem a passar mal comigo por qualquer meio. Vocêquando cá passar, amanhã vem da escola, tem que me dizer.

A moça foi dali para casa (já não estou a contar bem, que isto é uma espécie de uma história) e tinha lá um velhote queela tinha visto, na borda do caminho, um dia que vinha da escola, todo molhadinho. O velhinho, levou-o para casa evestiu-o, e tinha-o lá, e não disse ao pai e á mãe o que o tipo lhe perguntou mas disse ao velhote: quando eu vinha daescola um sujeito saiu-me ao caminho e disse-me assim: Ó menina: você tem que me responder a esta pergunta.

E o velhote disse: Então como era a pergunta? A pergunta é esta: O que é aquilo que de manhã é anjo, ao almoço épavão, à tarde é burro e à noite é cão?

R: É o homem: meninice, adolescência, idade adulta , velhice”

Recolha: 26-07-1975, Aldeia do Meco (Sesimbra, Setúbal). Informante: Domingos Castelo, 56 anos.

O que fica claro na análise deste corpus é que os critérios de recolha das adivinhas e a consequente categorização construída por Giacometti apresenta-se de forma diferente das tipologias mais usualmente utilizadas na classificação das adivinhas, não parecendo ter como critério principal de classificação a sua chave ou resposta, mas parecendo existir um enfoque na situação concreta vivenciada entre os interlocutores (desafiante/desafiado), ou seja, no contexto do jogo jogado. Este enfoque poderá explicar as denominações de algumas das categorias utilizadas como “adivinhas que envolvem uma explicação e/ou história” ou as “adivinhas de resposta irónica e/ou sarcástica para o interlocutor”, que remetem mais para o processo de interação entre interlocutores do que para os conteúdos do texto das adivinhas. Esta será, certamente, uma das várias questões que, a partir deste corpus de adivinhas, irá renovar o interesse, e multiplicar as análises e discussões entre os investigadores da área.

Rosário Rosa - Bolseira de investigação IELT/Memóriamedia

2013

 

Bibliografia

NOGUEIRA, Carlos, (2004), “Para uma teoria da adivinha tradicional portuguesa”. Revista de Literaturas Populares, IV-2.

SARAIVA, Arnaldo, (1999), “Poética e enigmática das adivinhas populares portuguesas”. In Actas do 1º Encontro sobre Cultura Popular (Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Viegas Guerreiro). Ponta Delgada: Universidade dos Açores.

Modo de referenciar este artigo:

Rosa, Rosário, (2013), “Adivinhário – Fundo Michel Giacometti | Museu da Música Portuguesa” in Sousa, Filomena (Coord), Projecto Adivinhário-Memóriamedia. Alenquer:Memória Imaterial, CRL/IELT. (8 p.). Consultado (data) in http://www.memoriamedia.net/index.php/corpus-adivinhario