I

Qual é a coisa

Qual é ela,

Capelinha branca

Sem porta nem tranca?

 

Qual é a coisa

Qual é ela,

Uma casa branca

Sem porta nem janela?

 

Qual é coisa qual é ela que Édipo resolve e logo a Esfinge sucumbe?

 

Qual é coisa qual é ela... que, segundo Manuel Viegas Guerreiro, exige «apuros de inteligência» para lhe ser encontrada a solução?

 

Qual é coisa qual é ela... que, uma vez violada a sua porta de acesso, nunca mais será a mesma?

 

Qual é coisa qual é ela... que, depois de aberta, nunca mais fica conforme?

 

Respostas: ou ovo ou adivinha.

Conforme Carlos Augusto Ribeiro, quer o ovo, quer a adivinha «não são para ser invadidos, não foram feitos para ser interface entre interior e exterior. Qualquer um, se está fechado, é só interioridade. Quando se parte, é só exterioridade. O mesmo movimento e dinamismo entre casa que não é casa tanto se encontra no ovo como na adivinha. Não é ela que diz o que diz sem o dizer directamente?»

II

Em Portugal, as adivinhas têm sido pouco arquivadas, pouco analisadas. A escassez de boas colecções de adivinhas portuguesas bem com a ausência de estudos nomeadamente no que diz respeito à linguagem quer no seu enigmatismo, quer na sua poética dever-se-á, segundo Arnaldo Saraiva, ao menosprezo devido a um texto verbal breve, implicando um jogo de pergunta-resposta, exigindo não uma atenção ao divino (para o qual a sua etimologia remete), ao mágico, religioso e misterioso (com o carisma do adivinho, do sacerdote, da sibila, da feiticeira) mas pressupondo apenas «o trabalho, laico, da razão e da imaginação, operações lógicas e analógicas, raciocínios indutivos, dedutivos e edutivos»[1] . «Só os imbecis adivinham», escreve Arnaldo Saraiva citando Ruy Guerra sobre Edgar Alan Poe, e acrescenta:

porque os outros prestam atenção, observam — e raciocinam, e concluem.

Afinal, e apesar de menosprezada pelos teóricos, críticos, estilistas e retóricos da literatura portuguesa, à maior parte das adivinhas não faltam elementos típicos do discurso poético:

Métrica, rima, ritmo; metassememas, metalogismos, metataxes, especialmente imagens, metáforas, elipses, equívocos; linguagem concreta, animada, sugestiva, que se pode valer de oralismos, arcaísmos, neologismos e até de palavras hápaxes; sólida arquitectura formal ou semântica, jogo, às vezes, subtil, de correspondências sémicas ou sonoras; conotação, concisão.

Como se um texto simples e breve escondesse o enigma de toda a construção linguística, literária e poética, num malabarismo discreto ou num ilusionismo notável: no pequeno, no ovo, na adivinha residiria o grande, o cosmo, a poesia.

E fechemos o circuito em volta do ovo e da adivinha, regressando a Arnaldo Saraiva e ao seu empenhamento em valorizar a adivinha. Ou um ovo, acrescentamos:

O texto-adivinha exige mais do que o texto simplesmente poético; favorecendo também a exploração das suas potencialidades semânticas e simbólicas, ele querque o leitor, depois de as explorar minuciosamente, as estruture e oriente para um referente preciso, que torna claro o cifrado, o difuso ou o confuso, e que dá validade ou valor a um jogo de correspondências, analogias e homologias entre mundo (animal, vegetal e mineral), que é também um jogo de conhecimento da natureza e da cultura.

Talvez porque quem adivinha desfaz o mistério ou o gesto de fazer ovo, manter o enigma parece garantir a magia da criação. Haverá então a penalizar o adivinhador bem-sucedido. Na tradição popular portuguesa, o insulto dirige-se a quem quebra o irreparável:

— O que é que bebe e não mija?

— A galinha.

— Cebo para quem tanto adivinha.

— Qual foi o homem que a princesa escolheu: o do tapete, o que tinha o espelho ou o da vela?

— O da vela.

— Merda pra ti mais pra ela.

Fica-se no plano do conto onde a adivinha é mais contada do que perguntada. «A adivinha é uma falsa pergunta», afirma Carlos Augusto Ribeiro. «A alguém que, sendo o ouvinte dessa pergunta, nunca é ou deve ser o seu explicador. O segredo da resposta é o segredo que deve envolver a adivinha. O silêncio verdadeiro ou simulado do perguntado é o esqueleto que envolve a pele da adivinha.»

III

TEXTO reescrito por Ana Paula Guimarães e Carlos Augusto Ribeiro, citando Manuel Viegas Guerreiro, Arnaldo Saraiva e textos da tradição oral, retransmitindo parte de um capítulo de uma obra intitulada Cuidar da Criação – Galinhas, galos, frangos e pintos na tradição popular portuguesa (Lisboa, Apenas Livros, 2002) – agora, em 2013. Assim se celebra a publicação da notável recolha de Michel Giacometti, arquivada em Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades Faria, espólio gentilmente cedido a Memória Imaterial/IELT visando a sua divulgação.

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[1] Arnaldo Saraiva, «Enigmática e poética das adivinhas populares portuguesas», Folclore, n.º 253-A, Fundação Joaquim Nabuco, Instituto de Pesquisas Sociais, Coordenadoria de Estudos Folclóricos, Agosto 1998.