Designação: Pinturas decorativas de embarcações tradicionais
Praticantes: Eduardo Rodrigues, Luís Filipe, Luís Guerreiro
Local: Sarilhos Grandes
Freguesia: Moita
Concelho: Moita
Distrito:  Setúbal
Data de recolha:
2025
 

Inventário PCI

Flores do Tejo - pintores de embarcações tradicionais

Na baía do rio Tejo, sobrevive uma arte singular, vibrante e carregada de simbolismo: a pintura tradicional das embarcações típicas. Os seus protagonistas são artesãos que embelezam os varinos, faluas, canoas e catraias e preservam uma expressão identitária coletiva enraizada na cultura ribeirinha. Esta arte, as Flores do Tejo, não é apenas decorativa, é parte integrante do Património Cultural Imaterial da região, transmitida de geração em geração, associada à construção tradicional das embarcações do Tejo.

 

Transcrição

Caraterização

Caraterização

Embora estes três pintores estejam sediados na Moita, o seu trabalho estende-se a toda a baía do Tejo. São frequentemente chamados a pintar embarcações de outros concelhos, como Seixal Montijo, Vila Franca de Xira ou Alcochete sendo reconhecidos por um estilo próprio e inconfundível. Este reconhecimento reflete o carácter partilhado da tradição, em que cada comunidade ribeirinha contribui para a manutenção de um património comum.

A arte de pintar barcos está também intimamente ligada à construção naval tradicional do Tejo. Não há pintura sem madeira, nem decoração sem casco. Os estaleiros, alguns deles ainda ativos, continuam a ser espaços de transmissão de saberes, onde a colaboração entre carpinteiros, arrais e pintores mantém viva uma cadeia de conhecimento artesanal. Este ecossistema cultural faz parte do tecido vivo das comunidades ribeirinhas e é exemplo de uma prática integrada e colaborativa.

Os motivos decorativos presentes nestas embarcações são variados e de grande riqueza simbólica. Destacam-se:

Flores (rosas, cravos, malmequeres), muitas vezes agrupadas como buquês ou bordados, com cores vivas e sombreados subtis;

Letras decorativas, pintadas de acordo com um tipo de letra informal, não fixado mas partilhado pela comunidade, onde cada pintor acrescenta o seu toque pessoal.

Painéis de popa e proa com cenas religiosas, taurinas ou da vida quotidiana no estuário;

Elementos geométricos e padrões ornamentais, herdados da estética popular e naval portuguesa.

Estas composições são executadas com tintas diluídas, pincéis finíssimos, e com controlo do gesto e da respiração. Os barcos tornam-se expressões artísticas flutuantes, cujas pinturas são pensadas para brilhar especialmente nas festas fluviais, como a da Nossa Senhora da Boa Viagem, na Moita, descrita por um dos praticantes como “um desfile de vaidades”, onde cada embarcação exibe com orgulho a sua decoração mais recente.

Funções e Significados

A pintura tradicional das embarcações desempenha múltiplas funções:

  • Estética: confere beleza e distinção às embarcações;
  • Identitária: expressa a pertença à comunidade ribeirinha;
  • Social e ritual: integra-se nas festas e eventos religiosos e laicos;
  • Memória coletiva: mantém viva a ligação entre as gerações e o território;
  • Técnica: complementa o ciclo da construção e manutenção naval artesanal.
Documentação
Origem / história

As embarcações tradicionais do rio Tejo tiveram, desde pelo menos o século XV, um papel central na vida económica da região. Foram fundamentais no transporte de mercadorias, matérias-primas, produtos agrícolas, gado e passageiros entre as margens do rio e a cidade de Lisboa, abastecendo-a com recursos provenientes da lezíria, da charneca e da serra.

Estas embarcações eram adaptadas ao regime das marés, aos ventos e às correntes do estuário, e operavam diariamente como parte da economia fluvial. O seu registo está documentado em fontes iconográficas diversas — incluindo pinturas antigas, gravuras, fotografias de arquivo e postais ilustrados do século XIX e início do século XX — que mostram a imponência destas frotas em pleno funcionamento.

Tradicionalmente, os cascos das embarcações eram protegidos com pez (alcatrão) para impermeabilização, o que conferia à madeira uma cor negra e limitava a pintura decorativa a áreas reduzidas como as "emendas", pequenas faixas no topo dos cascos, e o interior das embarcações, onde se localizavam os painéis figurativos e florais.

Com o avanço técnico e o abandono progressivo do uso de pez no início do século XX, os cascos passaram a ser pintados com tintas coloridas, abrindo espaço para o desenvolvimento e expansão das decorações exteriores, que se tornaram mais exuberantes e visíveis.

Paralelamente, nas festas religiosas, fluviais e romarias, tornou-se hábito engalanar as embarcações com bandeiras, colchas, flores e pintura renovada, como forma de honra, rivalidade saudável e expressão estética. Em festas como a da Moita, as embarcações eram por vezes tapadas com lonas até ao momento da procissão fluvial, guardando em segredo a pintura nova — numa “feira de vaidades” onde se mostrava o talento do pintor e o orgulho do proprietário.

 

Bibliografia

Identificação

Processos e técnicas tradicionais
Práticas artísticas e correlacionadas
Flores do Tejo - pintores de embarcações tradicionais
Eduardo Rodrigues, Luís Filipe, Luís Guerreiro

Contexto de produção

Comunidade ou grupo
Comunidade de praticantes da Moita
Fundação do grupo ou comunidade
Detentor de direitos
Praticantes e detentores
Descrição de direitos

Direitos Coletivos e Comunais
A arte de pintar barcos tradicionais da baía do Tejo é um saber coletivo, enraizado na experiência das comunidades ribeirinhas do estuário do Tejo (Moita, Barreiro, Seixal, Alcochete, Lisboa, entre outras). Trata-se de um património que:

É transmitido oralmente e na prática, de geração em geração;
Pertence à memória coletiva e identidade cultural dessas comunidades;
Integra o sistema de relações sociais e de cooperação (ex.: entre estaleiros, arrais, pintores e proprietários de barcos).
Por isso, os direitos de salvaguarda e gestão cultural do elemento pertencem primariamente à comunidade praticante, cabendo ao Estado e às instituições o dever de respeitar, reconhecer e apoiar essa prática, sem a expropriar ou desvirtuar.

As comunidades que mantêm viva esta tradição (pintores, construtores navais, associações náuticas, estaleiros) possuem o direito de participação ativa em:

Processos de inventariação e reconhecimento patrimonial;
Projetos de salvaguarda, valorização e transmissão do saber;
Tomada de decisões sobre formas legítimas de uso, reprodução e comunicação do elemento.

Medidas de salvaguarda

Criação de oficinas e programas intergeracionais de transmissão de saberes;

Apoio à manutenção dos estaleiros e construção naval tradicional;

Promoção da arte nas festas fluviais e eventos culturais ribeirinhos;

 

Riscos identificados

Este elemento enfrenta vários riscos:

Envelhecimento e escassez de praticantes ativos;

Desaparecimento dos estaleiros tradicionais;

Falta de valorização escolar e institucional da arte;

Pressões urbanas e distanciamento das comunidades do rio.

Apesar disso, subsiste um núcleo resiliente de artistas e comunidades que continuam a praticar, promover e valorizar esta tradição, sobretudo em momentos festivos e iniciativas de salvaguarda local.

Contexto territorial

Sarilhos Pequenos
Moita
Moita
Portugal

Contexto temporal

2025
As pinturas são efetuadas assim que o tempo fica mais quente e seco. Normalmente no fim da primavera e início do verão.

Património associado

Património Cultural Imaterial

A prática de pintura tradicional de embarcações do Tejo está integrada num sistema cultural mais amplo, que articula saberes técnicos, expressões simbólicas, práticas sociais e festividades comunitárias. Entre os elementos de Património Cultural Imaterial associados, destacam-se:

1. Saberes e Técnicas Tradicionais
Construção naval artesanal em madeira (varinos, faluas, canoas);
Reparação, calafetagem e manutenção dos cascos, em articulação com a pintura;
Técnicas de aplicação de pigmentos, sombreados e traço livre, transmitidas oralmente ou pela prática direta com mestres.
2. Práticas Sociais e Rituais
Procissões fluviais e festas religiosas, como a Festa da Nossa Senhora da Boa Viagem (Moita), em que os barcos pintados são exibidos com orgulho;
Costumes de engalanamento das embarcações com flores, colchas e bandeiras nas ocasiões festivas;
Rivalidades saudáveis e manifestações de identidade entre freguesias, estaleiros ou arrais, expressas na decoração dos barcos.
3. Expressões Orais e Memória Coletiva
Frases populares e provérbios pintados nos painéis (ex: “Mais vale tarde que nunca”);
Histórias de mestres, arrais e embarcações emblemáticas, transmitidas oralmente e recriadas no discurso dos praticantes;
Nomes simbólicos das embarcações, com valor afetivo e cultural.
4. Expressões Artísticas e Estéticas
Estilos pessoais de pintura, reconhecidos na comunidade e transmitidos como "assinatura" artística;
Relação com a arte popular portuguesa (cores, flores, padrões) e com a iconografia religiosa ou taurina;
Participação em concursos de embarcações ornamentadas, durante festas náuticas.
5. Ofícios Complementares
Ligação à atividade de marítimos do Tejo, pescadores, carregadores e balseiros;
Relação com o trabalho de carpinteiros navais, calafates, ferreiros e outros artífices da náutica tradicional.

Este conjunto de expressões e práticas forma uma constelação de saberes e vivências interdependentes, que reforça o valor da pintura tradicional como elemento central de um modo de vida ribeirinho e da sua identidade cultural coletiva.

Património Material

A prática da pintura tradicional de embarcações do Tejo está profundamente ligada a um conjunto de bens materiais que sustentam, contextualizam e preservam esta expressão cultural. Entre os principais elementos de património material associado destacam-se:

1. As Embarcações Tradicionais
Varinos, faluas, canoas, catraias, fragatas e outras tipologias náuticas do Tejo constituem o suporte físico e funcional desta prática;
Estes barcos, de construção em madeira, seguem modelos tradicionais adaptados ao regime de marés e às características do estuário;
As suas formas e proporções condicionam o tipo de pintura possível, incluindo áreas como a proa, painel de popa e “emendas” (faixas decorativas no topo do casco).
2. Os Estaleiros Navais Tradicionais
Espaços essenciais para a construção, reparação e pintura das embarcações;
Situam-se nas margens do Tejo, em localidades como Moita, Seixal, Barreiro, Alcochete e Lisboa (ex: Cais da Caldeira, Cais do Ginjal);
São também locais de transmissão oral e prática de saberes, funcionando como oficinas vivas da cultura ribeirinha.
3. Ferramentas e Materiais Tradicionais
Tintas e pigmentos, hoje comerciais, mas outrora preparadas com materiais naturais;
Pincéis finos, palitos, fitas adesivas, papel vegetal e instrumentos caseiros adaptados para sombreados e traços decorativos;
Elementos auxiliares de apoio à pintura, como pranchas, andaimes ou suportes instalados junto aos barcos.
4. Painéis Pintados e Componentes Decorativos
Elementos visuais que integram a estrutura dos barcos, como o painel de popa, frequentemente figurativo (religioso, taurino, popular);
As letras do nome da embarcação, pintadas com técnicas tradicionais;
Os bordados e emendas florais, que funcionam como assinatura estética do pintor.
5. Registos Documentais e Visuais
Fotografias antigas, postais, desenhos técnicos e pinturas que testemunham a evolução das embarcações e dos estilos decorativos;
Modelos de barcos tradicionais em museus e associações náuticas, como o Museu de Marinha ou o Museu Naval do Seixal;
Catálogos e publicações que documentam os estilos e autores destas pinturas ao longo do tempo.

Este património material, em articulação com o saber-fazer imaterial, forma um conjunto indivisível que sustenta a prática tradicional e deve ser considerado no seu todo para efeitos de salvaguarda e valorização cultural.

Património natural

A arte de pintar barcos tradicionais está intrinsecamente ligada ao estuário do rio Tejo, o maior estuário da Europa Ocidental, que constitui um ecossistema natural de grande valor ambiental, ecológico e paisagístico. A prática desenvolve-se ao longo da baía do Tejo, abrangendo localidades como a Moita, Barreiro, Seixal, Alcochete e Lisboa, cuja relação histórica e funcional com o rio é essencial para a continuidade desta expressão cultural.

A bacia hidrográfica do Tejo integra o rio Tejo e os seus afluentes, servindo de suporte físico à navegação tradicional e às atividades fluviais onde se insere a construção e pintura de embarcações. Este sistema fluvial foi, durante séculos, a principal via de transporte e ligação entre o interior e o litoral português, sendo vital para o abastecimento da cidade de Lisboa.

Zonas Naturais e Protegidas Próximas
As comunidades onde esta prática se mantém estão próximas ou inseridas em áreas de elevado valor ecológico, designadamente:

Reserva Natural do Estuário do Tejo (RNET) – Classificada desde 1976, é uma das zonas húmidas mais importantes da Europa, abrangendo sapais, salinas e ilhotas que servem de abrigo e alimento a milhares de aves migratórias. Esta reserva cobre parte significativa da margem sul do estuário, incluindo áreas próximas da Moita, Alcochete e Barreiro.
Zona de Proteção Especial (ZPE) do Estuário do Tejo – Integrada na Rede Natura 2000, visa proteger habitats naturais e espécies prioritárias, sobretudo aves aquáticas e limícolas.
Paisagens Ribeirinhas e Marinhas do Tejo Inferior – Incluindo zonas de vasa, caniçais e bancos de areia, onde ainda se observam vestígios da atividade tradicional de construção e reparação naval.

Contexto de transmissão

Estado da transmissão
ativa
Descrição da transmissão
aprendizagem informal e formal
Agentes de tramissão

A aprendizagem desta arte é marcada por um percurso informal, baseado na observação, na experiência prática e na convivência com os mestres. Muitos dos atuais pintores cresceram junto aos estaleiros e às praias fluviais, onde passavam os dias a ver trabalhar os carpinteiros navais e os pintores. A transmissão do saber dá-se “de olhos postos nas mãos dos outros”, como afirmam, e cada traço aprendido encerra uma ligação emocional ao território e às pessoas.

O curso promovido pela Câmara Municipal da Moita em 2011 foi um dos poucos momentos de formalização deste ensino, mas o conhecimento mais profundo — aquele que diferencia cada pintor — é adquirido ao longo de anos de prática, de troca de saberes e de entrega pessoal. Cada flor, cada letra, cada painel pintado contém a marca única de quem o executa. “Cada um de nós tem uma alma, e essa alma não se copia”, resume um dos pintores.

A adoção de novas técnicas ou materiais para pintar sublinha a vitalidade desta prática tradicional que continua em evolução. As novas tintas marítimas vieram facilitar a aplicação das pinturas decorativas tradicionais. Durante os vários séculos de existência destas embarcações no Tejo, os cascos adquiriam a cor negra através da aplicação de pez, alcatrão, que impermeabilizava os barcos. Hoje, os cascos são protegidos com tintas industriais marítimas, com uma paleta variada de cores, o que acrescentou diversidade visual a estas embarcações e permitiu estender a aplicação das pinturas decorativas a todo o barco, conforme a criatividade dos pintores.

Esta arte é praticada por um número reduzido de pintores ribeirinhos, com expressão significativa na Moita, mas cujas intervenções abrangem embarcações de toda a baía do Tejo, incluindo o Barreiro, Seixal, Alcochete e Lisboa. Estes artistas colaboram estreitamente com carpinteiros navais, arrais, proprietários de embarcações e associações náuticas.

Muitos pintores iniciaram-se no ofício através da convivência com mestres antigos, estaleiros familiares ou participação informal em atividades comunitárias. A transmissão dos saberes é essencialmente empírica e oral, por observação e prática.

Modo de Transmissão

A transmissão dos saberes é não formal, realizada no contexto do estaleiro, da comunidade ou da família. A observação direta, o acompanhamento de mestres e a prática constante são os principais modos de aprendizagem. Existem também registos pontuais de ações formativas promovidas por autarquias e associações, como o curso promovido pela Câmara Municipal da Moita em 2011, que contribuiu para renovar o interesse e atrair novos praticantes.

Idioma
Português

Equipa

Transcrição
Memória Imaterial CRL
Registo vídeo / audio
José Barbieri
Entrevista
Filomena sousa
Inventário PCI - Memoria Imaterial CRL