O Carnaval
A senhora foi passar o Carnaval em casa do filho. Marido e mulher. Só tinham um filhinho! Dantes o Entrudo, aqui há cinquenta e seis anos, na' queira saber como era! Aquilo eram perus mortos, eram filhoses, era arroz-doce e peru morto e guisado, aqueles assados de peru! Aquela coisa muito boa! A mulher passou lá os dias todos mais o marido na do filho. Depois veio toda atabarrotada com tanta carne... Aquilo eram filhoses (feitas assim como os guarda-chuvas sem varetas) e arroz-doce e azevias... Na' queira saber!
Quando acabou o Carnaval vieram-se embora, quem de lá não é e lá não mora, teve que s'ir embora! Veio de lá muito abatarrotada e, olhe, acontece que chegou cá a casa, disse assim pò marido:
– Ó marido! Que é que hei-de fazer pò almoço?!
Marido – Olha uma açordinha! – É o me'mo que o meu marido diz quando a gente vem de qualquer lado que eu na' tenho comer!
E disse assim a mulher:
– Uma açordinha! Atão vá... Eu ponho três ovos a cozer e fazemos uma açordinha.
Disse assim o marido logo... Espírito santo de orelha!
– Atão somos só dois e pões três ovos?!
Mulher – Eu como dois!
Ele ficou logo azedo!
Marido – Atão? Somos só dois e agora pões três ovos...
Mulher – Atão, eu cá como dois!
Chegou-se à hora da açorda, ela foi fazê-la. Assim foi. Descascou os dois ovos pra ela e o marido só um ovito. E ele disse assim:
– Olha lá! Atão se partisses o ovo ao meio, cada um comia um e metade!
Mulher – Não! Quero comer dois!
Teimou. Tanto discutiram, tanto discutiram (por caso do raio do ovo! Se fosse eu punha meia dúzia, já na' havia briga). Olhe, ele deu-lhe cá um murro! No sítio mortal, aqui por uma fonte... Ela caiu pò chão, ficou morta! Parecia que ficou morta, mas ficou atordoada e aguentou-se assim.
E dantes iam logo tratar da boda! Fazer logo o funeral! (Por isso é que a gente antes 'tá vinte e quatro horas, pra ver se revivemos). Ele foi tratar do funeral, logo do caixão e daquilo tudo e dizer às pessoas... Mas nunca disse que lhe tinha dado um murrozinho com vontade! Acontece que veio a família toda (que ela já na' via há que tempos), veio tudo ao funeral da mulher. E foi assim uma coisa de surpresa...
Até um coxo foi ao funeral.
– Oh, senhor! Fulana morreu! Ai que desastre, aquela senhora morreu tão de repente!
Coxo – Atão eu sou coxo, mas vou também ao funeral!
Lá no cemitério, abriram-lhe o caixão (como é hábito, pra tudo ver) e foi me'mo a hora de ela acordar! Viu tanta gente (que ela há tanto tempo que na' via da família), começou-se a rir! Sabe o que o maroto do homem disse?! O malandreco?!
– Atão agora... – Ele estava com o olho nela. – Atão agora 'tás-te a rir?! Olha, a despesa 'tá feita! Tens que ir!
Ela ainda mais se ria! Via as pessoas...
Marido – Atão, agora 'tás-te a rir?! A despesa 'tá feita, tens que ir!
Mulher – Ai, credo!
A mulher lembrou-se! Saiu do caixão.
Mulher – Hei-de comer dois! E hei-de comer dois! E hei-de comer dois! – Lembrou-se que era do ovo! – Hei-de comer dois!
O acompanhamento abalou todo a fugir. E 'tava lá um coxozinho que foi em muletas.
E ela dizia:
– Hei-de comer dois! Hei-de comer dois!
O coxo dizia assim:
– Ai, de mim! E d' outro! Eu já sei que sou comido! Qual será o outro? Ai de mim! E de outro! – E coxeava e abalava... – Ai de mim! E d' outro! Eu já sei que sou comido, qual será o outro?!
O pessoal todo a fugir... E bem-dito, louvado, o meu continho 'tá acabado! E desculpe se na' é do seu agrado!
Luísa de Jesus, 76 anos, Amieiras (conc. Mora), Junho 2007.