[A carta da Algarvia]
E a minha mãe até dava pra contar assim, às vezes, qualquer coisa que se passava aqui em Beringel. Às vezes contando sobre quando ela era nova e as algarvias(1) vinham pra cá mondar(2). E atão ia um carro para as trazer. Quando abalavam, eram as famílias a despedirem-se delas:
– “Façam boa viagem! Tenham por lá festas alegres! Já lá chegando, escrevam. Mandem o retrato”! – Por jeitos aquilo era a mesma coisa, escrevam ou mandem o retrato!
Bom, chegavam cá, não sabiam ler, começavam elas a dizer ao rapaz que andava na monda (que era o filho do patrão, que era só quem sabia ler era essa gente):
– Tenho que escrever uma carta ao meu namorado! E você…
Filho do patrão – Atão, aí amanhã, traga a carta. Eu, aí à hora do meio-dia – quando acabavam de almoçar(3) –, atão escrevia a carta. –E jantar(3), que nesse tempo era jantar e, à noite, era cear(3).
Ia para escrever a carta:
– Bom, atão vá! – A mesa posta… Olhou a uma coisinha para pôr ali uma tábua, para escrever.
– Atão vá. Diga lá o que é que quer mandar ao seu namorado.
Algarvia: – Bom, então escreva lá:
“ Cá te escrevo, lá m’a leias.
Se m’ amas, manda-me dizer.
E se não m’ amas, manda-me dizer também.
E se m’ mas à vida(4), traz-me um lenço.
E as minhas papo contigo, só à vista terem fim.
Dá saudades à Maria Fantocha e à Mariana Carcorcheira”
Foram as que ficaram lá, que não vieram à monda. Era a carta dela.
Olívia Brissos, Beringel (conc. Beja), Fevereiro de 2006.
Glossário:
(1) Algarvia: pessoa natural do Algarve, região do Sul de Portugal (abaixo do Alentejo).
(2) Mondar: Arrancar das ervas nocivas na seara.
(3) Almoçar, jantar e cear: antigamente quem trabalhava no campo tinha normalmente como principais refeições do dia: a) o chamado “mata-bicho” tomado entre as 6 e as 7 da manhã; b) o almoço entre as 8 horas e as 10 horas; c) o jantar: tomado normalmente pelas 12 horas; d) poderia haver a merenda por volta das 16 horas; e, por último, e) a ceia: tomada entre as 19 horas e as 20 horas.
(4) M’mas à vida: trocadilho de palavras que pode referir-se a “se me amas” e, em simultâneo, a “mamas à vida”, similar a “estar montado na vida”, ou seja, se a vida corre bem financeiramente.
Para execução deste glossário consultou-se o website http://www.priberam.pt e as obras: a) SOUSA, Acácio de; SOUSA, Gentil Ferreira, CARDOSO, Orlando. (1990). Leiria – O Fascínio da Cidade. s.editor, s.ed. Leiria; b) SOUSA, José Ribeiro de. (2003/2004). Cancioneiro De Entre Mar e Serra da Alta Estremadura. 1ª. Edição. Leiria: Câmara Municipal de Leiria; c) Simões, Guilherme Augusto. (2000)., Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. 2ª. edição. Dicionários D. Quixote; 34. Lisboa: Publicações D. Quixote.