Enganar a Morte
Não havia reformas antigamente, mas aqueles que eram empregados do Estado, que eram guardas ou polícias, arranjavam qualquer pensãozinha pròs pais.
Aquele homem era já assim idoso e o filho era guarda-fiscal e arranjou-lhe uma pensãozinha. E foi a Morte que veio buscar o velho. O velho disse-lhe assim:
– É Morte! É Morte, deixa-me viver! Mais pelo menos uns dez anos mais! Atão nunca ‘tive um tostão e agora o meu filho arranjou-me uma pensãozinha! E eu com essa pensão vou-me governando. Dá-me mais dez anos de vida!
Morte – Bom, atão vá lá... – A Morte deu-lhe mais dez anos de vida.
Vai que o velho (também era esperto) quando chegou o fim dos dez anos, o que é que ele pensou logo:
– A Morte vem-me buscar. E é hoje já! Há dez anos…
Despiu as calças, ficou só com a camisinha. E naquele tempo havia muita poeira, os rapazes brincavam ali na terra e urinando ali faziam *tigelinhas com a poeira*(1). Vai ele, despiu as calças, foi só com a camisinha brincar lá no meio dos rapazes e urinar ali prà poeira. Lá estava ele brincando no meio dos rapazes, cagaram aqui assim para um buraco (tu!) e ele ia, assim aos saltinhos, olhava pra cima, pa’ Morte, dizia assim:
– Mãe, papa!
Ele olhava para a Morte e dizia:
– Mãe, papa! Mãe, papa!
E assim foi. E a Morte na’ o levou logo. Depois ainda pensava que ia dormir no meio dos rapazes, mas disse a Morte:
– Não! Hoje vais…
Hoje…na’ se engana nada!»
Francisco Galamba, 84 anos, Ficalho, (conc. Serpa), Fevereiro 2006.
Glossário
(1) *Tigelinhas com a poeira* = tigelinha de seca seca= malguinha.
«Malguinha – Num montículo de terra faz-se uma cova redonda e deita-se-lhe água lentamente e por pouco tempo, de modo a humedecer apenas o interior, com jeito, mete-se a mão por baixo da parte húmida e levanta-se esta: aí está a malguinha ou a tigelinha. Quando falta a água, os rapazes utilizam a própria urina.» (Cabral, António. (1998). Jogos populares infantis. Colecção Coisas Nossas. Editorial Notícias, p.261).